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A necessidade de odiar e culpar os outros

A necessidade de odiar e culpar os outros

“Onde estão os inimigos? O povo não gosta de amar. O povo gosta de odiar.” Foi assim que o presidente Jânio Quadros dirigiu-se enfático a Roberto Campos quando este entregou ao presidente o texto sugerido para a entrevista de Jânio sobre a reforma cambial. Corria o mês de março de 1961 e Jânio, há três […]

José Pio Martins - sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024 - 09:54

“Onde estão os inimigos? O povo não gosta de amar. O povo gosta de odiar.” Foi assim que o presidente Jânio Quadros dirigiu-se enfático a Roberto Campos quando este entregou ao presidente o texto sugerido para a entrevista de Jânio sobre a reforma cambial.

Corria o mês de março de 1961 e Jânio, há três meses na presidência, iria dar entrevista sobre um assunto sempre espinhoso da economia brasileira: a política do governo sobre o problema do dólar, a reforma cambial e a desvalorização do cruzeiro, pois a taxa de câmbio estava defasada. Jânio rabiscou algumas notas no texto e, na entrevista, não anunciou a desvalorização do cruzeiro e disparou xingamentos ao FMI e aos trustes internacionais.

Era um discurso baseado na crença de que o povo gosta de odiar e de culpar os outros por nossos problemas. Os políticos gostam de eleger inimigos externos a quem culpar pelas mazelas do governo e do país. No tempo de Getúlio Vargas, o inimigo era remessa de lucros (o envio de parte dos lucros das empresas multinacionais para suas matrizes), coisa que governo e políticos de esquerda diziam ser a causa da pobreza brasileira.

Juscelino Kubitschek, o presidente seguinte, também fabricou seu inimigo externo, como forma de desviar a atenção sobre a corrupção e emissão de moeda para pagar a construção de Brasília. O inimigo eleito por Juscelino foi o Fundo Monetário Internacional (FMI), acusando-o de culpado pelos problemas econômicos brasileiros. Com esse discurso, Juscelino se recusou a corrigir a errante política cambial e o país correu o risco de ficar sem o dinheiro do FMI e ter de reduzir a importação de petróleo, trigo e outros alimentos.

Nos anos 1970, o inimigo eram as empresas multinacionais, que políticos radicais queriam expulsá-las do país. Era um atitude esquizofrênica, pois o que mais o Brasil necessitava era abrir a economia e atrair investimentos estrangeiros. Ao comércio exterior seguem-se os investimentos, e aos investimentos segue-se a transferência de tecnologia.

Severo Gomes, ministro da Indústria e Comércio de 1974 a 1977, depois senador, elegeu a informática estrangeira como inimiga da pátria e se aliou a militares nacionalistas e empresários oportunistas para aprovar a malfadada lei de reserva de mercado para a informática, que vigeu de 1974 a 1990 e retardou por 20 anos a inserção do Brasil no mundo dos computadores e do chip eletrônico.

Nos anos 1980, o inimigo passou a ser a dívida externa, que houvera crescido principalmente em razão de empréstimos internacionais para bancar a importação de petróleo, cujos preços haviam explodidos nas crises de 1974 e 1979. Enquanto o país rejeitava investimentos, o governo corria o mundo mendigando empréstimos para, na sequência, gritar contra a dívida e contra os juros. O FMI sempre esteve presente como um inimigo a ser xingado.

O fundo é um clube cujos membros são quase todos os países do mundo (apenas quatro países estão fora do fundo). Os membros colocam dinheiro no FMI e este empresta aos países com déficits nas contas externas, para ajudá-los a manter importações vitais para sua economia. Quanto à ideia de que o povo gosta de adiar e tem a mania de culpar os outros por nossos problemas, a coisa faz sentido. As revoluções são sempre baseadas na construção de inimigos internos ou externos, reais ou imaginários.

Os líderes políticos e os governantes em geral, quando perdem popularidade, inventam algum inimigo. Eu fui presidente de uma grande empresa no Paraguai e certo dia, num almoço com o presidente da República, Andréz Rodrigues, que era um político afável e simpático, perguntei se ele via chance de reconciliação entre Cuba e Estados Unidos.

Embora contido em suas declarações públicas, ele respondeu: “Senhor Martins, essa reconciliação nunca ocorrerá, pois a inimizade com os Estados Unidos é vital para a manutenção da ditadura; se a inimizade acabar, o regime cubano acaba”. Trazida para o plano pessoal, essa tese de que o povo tem necessidade de odiar e inclinação para culpar os outros por seus problemas, certa ou errada, merece reflexão, até para avaliar nossa própria tendência a praticá-la.

Encerro lembrando o filósofo Jean Paul Sartre: “O inferno são os outros”, dizia ele. Já Shakespeare, na peça Hamlet, afirmou: “Está em nós mesmos, meu caro Brutus, e não nas estrelas, a causa de nossas desgraças”. Pense nisso!

José Pio Martins, economista, professor, palestrante e consultor de economia, finanças e investimentos.

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