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Apitos, microfones, chuteiras e amarras

Apitos, microfones, chuteiras e amarras

A Copa do Mundo do Qatar evidenciou o abismo da desigualdade de gênero e o preconceito em relação à atuação profissional das mulheres no futebol

Daiana Allessi - quinta-feira, 8 de dezembro de 2022 - 09:00

A alegria da Copa do Mundo é contagiante, nos retira do comum, do normal. Favorece as reuniões de família, os encontros com amigos, aquela respirada durante a jornada de trabalho e a possibilidade de usar nosso verde e amarelo como símbolo nacional dissociado da polarização política instaurada.

Contudo, minhas convicções pessoais um tanto quanto ácidas, me remetem às arcaicas práticas romanas do panem et circenses (pão e circo), e na realidade contemporânea, com muito mais circo do que pão, trazendo à tona as inúmeras assimetrias que o mundial de futebol escancarou, sobretudo quando pensamos em mulheres.

Há alguns dias, enquanto eu ministrava uma aula sobre as conquistas femininas no Brasil, entre as várias situações que causaram espanto aos alunos, como por exemplo as dificuldades para a emancipação civil, educacional e política das mulheres, a participação feminina no esporte (ou melhor, a proibição de participar) chamou atenção.

Pasmem!

Não bastasse a pecha de “coisas de mulher”, limitadas e determinadas pela sociedade patriarcal da época, em 14 de abril de 1941, o presidente Getúlio Vargas assinou o Decreto-Lei nº 3.199, que em seu artigo 54, proibia as mulheres de praticar esportes que não fossem “adequados a sua natureza”.

Friso que embora não exista menção direta ao futebol, ele se enquadrava como modalidade proibida, haja vista ser considerado um esporte violento e ideal apenas para a prática masculina.

Tamanho era o preconceito que um jornal em 1941 estampou a seguinte manchete:

“PÉ DE MULHER NÃO FOI FEITO PRA SE METER EM CHUTEIRAS!”

Infelizmente não é assunto do passado o fato de homens legislarem sobre mulheres, inclusive determinando o que é ou não de sua natureza. E essa insensatez de cercear as atletas da prática esportiva durou de 1941 a 1979, situação que contribuiu ainda mais para criar barreiras e dificuldades para o desenvolvimento feminino no esporte e que possui reflexos até hoje.

Em relação ao futebol, a regulamentação do esporte para as mulheres ocorreu apenas no ano de 1983, apesar do Decreto proibitivo ter sido revogado em 1979.

 A seleção brasileira feminina saiu do papel apenas em 1988. A primeira competição feminina (experimental) organizada pela FIFA foi o Torneio Internacional de Futebol Feminino em Guangdong, na China, em 1988, como evento preliminar da primeira Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino em 1991. A primeira Olimpíada aconteceu em 1996 e a primeira medalha FIFA foi conquistada em 1999.

 Fiz toda essa cronologia para demonstrar o quanto é lento o porvir feminino. Há uma desigualdade histórica brutal que não é “mimimi” e demonstra que desde as decisões mais sérias às mais triviais, estamos presas a uma ideologia que hierarquiza homens em desfavor das mulheres. Até mesmo no esporte!

 E a Copa do Mundo do Qatar, realizada em um país culturalmente repressor das mulheres, aliado ao machismo intrínseco do futebol, ilustrou que os espaços cedidos (conquistados) estão muito aquém de representar inclusão das mulheres nessa arena esportiva excludente.

 O Mundial do Qatar 2022 marcou a presença da primeira mulher (Stéphanie Frappart) a arbitrar uma partida masculina em Copa do Mundo e escancarou a demora de mais de 50 anos para que uma mulher alcançasse protagonismo, mesmo após o vanguardismo da brasileira Léa Campos, que foi uma das primeiras mulheres no mundo a ter a profissão de árbitra, reconhecida pela FIFA em 1971. 

A ilustração foi feita pelo cartunista Waldo e publicada em revistas cariocas no ano de 1922, como a Revista A Cigarra. O cartunista visou a sátira de um boato sobre um inédito episódio de uma senhora que havia apitado uma partida de futebol. A publicação acompanhou a frase: “Se a moda pega”, partidas de futebol entre homens se tornarão “lutas de gentileza”. (Foto: Acervo/Museu do Futebol)

 Faço menção com alegria e orgulho das comentaristas, narradoras, repórteres, bandeiras, auxiliares e tantas outras mulheres que estão fazendo história e marcando sua presença no futebol, de modo a aliarem sua competência  com a representatividade.

 Nada que é imposto e rasamente justificado pela reprodução de uma cultura sexista e hierárquica pode render bons frutos e ressalto que não se trata de uma busca por inversão de papéis sociais fazendo das oprimidas, opressoras, pois se assim fosse não haveria algo imprescindível para uma carreira dentro do esporte e de tantos outros aspectos da vida, que é o sagrado direito de decidir.

 Que nós tenhamos a opção de sermos quem quisermos, quando quisermos e onde quisermos, sem julgamentos ou amarras, e que possamos inclusive, escolher o que colocar em nossos pés, sejam sapatos, chinelos ou até mesmo chuteiras!


Daiana Allessi é mãe, esposa, advogada, professora e pesquisadora sobre gênero e direitos das mulheres.

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