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O Direito e a perspectiva de gênero

O Direito e a perspectiva de gênero

Uma resolução do CNJ abre caminhos para que o Judiciário Brasileiro seja mais equânime e reflita a pluralidade e a democracia em suas decisões, sobretudo em relação às questões que envolvem gênero

Daiana Allessi - sexta-feira, 28 de abril de 2023 - 13:00

Hoje falarei um pouco sobre a perspectiva de gênero nos julgamentos e no quanto enxergar as demandas judiciais com essa “lente” favorece uma sociedade mais justa com a possibilidade de minimização das desigualdades.

Recentemente o que era apenas a Recomendação nº 128 transformou-se na Resolução nº 492 do CNJ que torna o julgamento com perspectiva de gênero obrigatório em todos os órgãos do Poder Judiciário Brasileiro.

Entender a importância e a aplicabilidade do protocolo é uma necessidade para os operadores e operadoras do direito e torna-se basilar que os cidadãos e cidadãs conheçam o seu conteúdo e a utilidade que as lentes de gênero possuem na diminuição das assimetrias e violências.

Que a violência existe todos nós sabemos, porém, o reconhecimento das desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas a que as mulheres foram e permanecem sendo submetidas ao longo da trajetória da sociedade brasileira é o primeiro passo para analisarmos criticamente o papel da Resolução e sua importância.

Essa desaceleração nas conquistas de direitos humanos, causada pelos estereótipos e rótulos patriarcais, exercem influência na produção e aplicação do Direito e nas decisões que impactam na vida de mulheres e meninas.

Muito embora nossa Constituição Federal determine a igualdade formal entre homens e mulheres, precisamos que o Direito seja interpretado e manejado de maneira emancipatória que combata às desigualdades de gênero que pesam sobre os ombros femininos e grupos contra hegemônicos.

Considero importante aclarar alguns conceitos que ainda geram confusões e opiniões controversas sobre os impactos do gênero na sociedade e no sistema de justiça.

O gênero deve ser entendido com o conjunto de características socialmente atribuídas aos diferentes sexos, de modo que o gênero está ligado às questões culturais e não biológicas. Portanto, ao pensarmos em uma mulher é muito automático que relacionemos essa mulher a uma série de construções sociais, estereótipos e rótulos impostos pela sociedade patriarcal, marcada por hierarquizações e opressões.

Apenas a título de exemplo, menciono a “tradição” do uso de roupas cor de rosa, do brincar com bonecas e panelinhas, porém, considero que esses papéis sociais imputados para as meninas são apenas a ponta do iceberg do modelo opressor que atinge às mulheres, se comparados ao fato de se naturalizar como inerentes ao feminino o trabalho de cuidado e uma série de características que agem negativamente em relação aos direitos humanos das mulheres.

E é necessário que tenhamos em mente o seguinte questionamento:

Sobre quais mulheres estamos falando?

Não há uma mulher universal, e embora a cultura patriarcal tente invisibilizar o feminino como um nicho sem diversidade, precisamos incluir e pensar de maneira plural e interseccional, ou seja, analisando os diferentes marcadores de opressão que perpassam o feminino, como a raça e a classe.

É preciso entender que o “ser” mulher ultrapassa o sexo biológico e perpassa por uma série de características socialmente construídas de modo que o gênero acaba sendo utilizado como um instrumento reprodutor de hierarquias entre homens e mulheres e criando binarismos patriarcais.

Explico.

Aos homens foram destinadas atividades de poder e ação no espaço público, características de racionalidade, intelectualidade, universalidade, e para as mulheres, foi relegado o espaço privado da domesticidade, das atividades de reprodução e cuidado, da natureza, dos sentimentos e da subordinação.

Se pensarmos historicamente, da maneira como nossa sociedade foi arquitetada, em bases patriarcais, escravocratas e coloniais perceberemos que sempre ocorreu uma subjugação do feminino em detrimento do masculino, e essa marginalização, impactou negativamente o desenvolvimento social e a emancipação feminina nos mais variados espaços, seja no trabalho remunerado, no campo político, na família, na sociedade e nas instituições. E dentro do sistema de justiça não é diferente.

Analisar o gênero como uma construção social nos dá a possibilidade de refletir sobre sua desconstrução em prol da igualdade material entre homens e mulheres, inclusive em relação à masculinidade tóxica. Em diversos ramos do direito, mas de maneira mais recorrente  em demandas trabalhistas, em processos de assédio, de direito das famílias, de violência contra mulheres a perspectiva de gênero precisa ser adotada pelos operadores e operadoras do direito, e sobretudo, pelos magistrados e magistradas que julgam tais demandas.

Entender o gênero é perceber as desigualdades cometidas em face dos rótulos atribuidos ao feminino  e trabalhar de maneira efetiva para desconstruir essa dimensão cultural que afeta às mulheres, inclusive, em relação à perpetuação dos estereótipos que uma decisão judicial pode causar.

Diferencio aqui o gênero enquanto uma construção social, do conceito de sexo biológico que envolve os órgãos sexuais, hormônios e cromossomos e classifica os individuos em nossa sociedade como machos, fêmeas e intersexuais. É nesse ponto que precisamos pensar como a construção do gênero como um produto social e cultural que afeta diretamente homens e mulheres, a exemplo dos meninos de roupa azul, bola e carrinho e as meninas de rosa brincando com panelinhas e bonecas.

Longe de polemizar, mas apenas exemplificando, os estereótipos, ainda que os mais sutis, estão arraigados no imaginário popular e auxiliam a produzir conceitos e pré-conceitos sobre homens e mulheres, e mais uma vez reafirmo sobre a importância das escolhas e do direito de decidir sem coação. Homogeneizar pessoas e conceitos produz e reproduz desigualdades, pois, embora algumas meninas gostem de brincar de boneca, isso não é uma regra e o mesmo se aplica aos meninos em relação às culturalmente conhecidas brincadeiras masculinas.

Diante dessas diferenças conceituais o gênero enquanto uma categoria de características socialmente contruídas e atribuídas a individuos de acordo com seu sexo biológico, nem sempre há uma plena conformação entre o sexo biológico e a expectativa social baseada nas atribuições enraizadas e naturalizadas na sociedade patriarcal.

Ressalto que o gênero é um conceito construído e portanto, artificial, de modo que muitas vezes uma pessoa pode se identificar com um conjunto de características não alinhadas com seu sexo biológico, ou seja, é possível que um individuo identificado sob o sexo masculino se identifique com características tradicionalmente associadas ao sexo feminino, ou vice e versa. Preciso ressaltar que também há pessoas que não se identificam com gênero algum.

E foi pensando nas diferenças sociais, nas muitas mulheres que existem e são perpassadas pelo racismo e pela classe, bem como, na população LGBTQIA+  que sofre extrema discriminação no Brasil e no mundo, que a heteronormatividade e o androcentrismo que continuam sendo o padrão e a expectativa da sociedade moderna precisam ser analisados e desconstruídos em prol do respeito e da dignidade de todas as pessoas, sobretudo nas decisões judiciais.

Neste ponto, magistrados e magistradas devem estar comprometidos com a busca da justiça social e com julgamentos baseados na perspectiva de gênero para a erradicação ou minimização da desigualdades. A pergunta que deve nortear a atuação jurisdicional é:

Rótulos de gênero e expectativas estão guiando determinada interpretação e/ou reforçando tais expectativas de alguma maneira, em prejuízo ao cidadão ou cidadã envolvidos na demanda?

Considerando que socialmente o padrão naturalizado é o heterossexual, quaisquer orientações diferentes, a exemplo da homossexualidade ou da bissexualidade são consideradas desviantes, fora das expectativas hegemônicas. Seguindo nesse raciocínio, de uma heteronormatividade que instituiu a heterossexualidade compulsória, a perspectiva de gênero se amolda na atuação jurídica que deve ser analisada sobre o seu comprometimento com a igualdade, e se essa heteronormatividade não está sendo corroborada ou reforçada por determinada decisão.

Historicamente, aos homens e as mulheres são atribuídas diferentes características, que têm significados e cargas valorativas distintas. O pouco valor que se atribui àquilo que associamos culturalmente ao “feminino” (esfera privada, passividade, trabalho de cuidado desvalorizado, emoção em detrimento da razão) em comparação com o “masculino” (esfera pública, atitude, agressividade, trabalho remunerado, racionalidade e neutralidade) é fruto da relação desigual de poder entre os gêneros e tende a perpetuá-las.

Isso significa dizer que, no mundo em que vivemos, desigualdades são fruto não apenas do tratamento diferenciado entre indivíduos e grupos, mas, sim, da existência de hierarquias estruturais.

Essas violências estruturais, sociais e institucionais favorecem as assimetrias e estimulam a violência de gênero. E essa violência é favorecida pela invisibilização e subordinação imposta às mulheres pela cultura do patriarcado, que nada mais é que um sistema político e cultural que foi introduzido na sociedade desde os primórdios da colonização e que estabelece hierarquização dos homens em detrimento das mulheres.

Lembro mais uma vez da importância de lembrarmos que as experiências em relação à opressão, mesmo dentro do grupo MULHERES é distinta, pois são muitas mulheres com apagamentos, dores e discriminações diferenciadas, são muitos eixos distintos de opressão sobre uma mesma pessoa, a exemplo das mulheres negras que além do sexismo e machismo, sofrem com o racismo que deve ser sempre combatido e analisado com viés interseccional.

Precisamos refletir também sobre a divisão sexual do trabalho que se organiza a partir  da construção histórica, social e cultural do gênero com base em uma ideia essencialista de que existem alguns trabalhos naturalmente masculinos e outros naturalmente femininos, bem como, na valorização exacerbada dos trabalhos remunerados masculinos em deterimento do trabalho feminino não remunerado.

Reforça-se uma romantização do trabalho de cuidado, uma feminização de determinadas atividades além da hierarquização entre o trabalho produtivo associado ao homem e o trabalho reprodutivo associado à mulher.

Neste ponto, a atividade jurisdicional precisa estar atenta à existência fática da divisão sexual do trabalho em suas decisões, de maneira a decidir as demandas com trajetória emancipatória e protetiva, quando se evidenciarem desigualdades baseadas em estereótipos de gênero, pois eles impactam na atividade jurisdicional quando  favorecem  a relevância de um determinado fato para ao julgamento.

Não é justiça quando a culpa é transferida para a vítima, quando a roupa usada justifica a violência, quando um depoimento é descredibilizado em razão de sexismo e poder, quando destempero e histeria são naturalizadas como características femininas ou quando convicções pessoais preconceituosas influenciam na decisão.

São tantas violências, revitimização e falas discriminatórias repetidas sem filtro e com naturalidade que me assusto. E temo mais ainda quando as pessoas discutem com base nas “ideias das suas cabeças”  sem estudar, conhecer história e desenvolver um senso crítico e coerente.

Então, continuemos a estudar, a questionar com fundamento e a estabelecer a ideia de que a igualdade material precisa ser uma realidade. E quando eu digo igualdade, não venham dar o exemplo da mulher que quer igualdade e por isso deve ir carregar os sacos de cimento na construção civil.

Se teu argumento for esse, não perderei meu tempo argumentando, até porque há várias mulheres que além de cimento, carregam cicatrizes, filhos e o peso do sexismo nas costas e sequer tomam conhecimento dessas reflexões. É por elas e por todas que precisamos exercer nossa cidadania pensante, nos despir dos mitos da neutralidade, dos binarismos patriarcais e dos rótulos reproduzidos geração após geração, sem filtro ou reflexão.

Sempré é tempo de aprender, de mudar rotas e de promover, ainda que mínimas, tranformação das narrativas sociais, combatendo as desigualdades e deixando o egoismo de lado.

Gostaria de escrever muito mais, mas não quero que o texto fique exaustivo e, por isso, após as  reflexões postas sobre os estereótipos de gênero reafirmo a necessidade de que tais preconceitos sejam combatidos com a adoção da perspectiva de gênero na atuação jurídica, enquanto advogadas e advogados, além dos magistrados e magistradas, Ministério Público e demais integrantes do sistema de justiça para que consigamos equilibrar um pouco a balança que pende para as injustiças patriarcais.

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”
(Simone de Beauvoir)


Daiana Allessi é mãe, esposa, advogada, professora e pesquisadora sobre gênero e direitos das mulheres.

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